Foi sentada em seu banco de quartzo que a Avó do Universo, moradora da Maloca do Céu, criou os homens, os animais, a terra e as águas. O banco foi entregue aos ancestrais dos atuais Tukano, que passaram a reproduzi-lo em madeira. O mito Tukano – povo do noroeste da Amazônia que ainda hoje fabrica os bancos em seu estilo tradicional – indica o lugar dos bancos entre os objetos sagrados, ao mesmo tempo parte do universo primevo e fonte do poder de criação.
A presença nos mitos de origem de alguns povos atesta a antiguidade da arte de talhar bancos: os primeiros registros do uso desses objetos entre ameríndios das terras baixas da América do Sul, do Caribe e da América Central datam de, pelo menos, 4 mil anos. São assentos individuais feitos de pedra ou de cerâmica (materiais que, diferentemente da madeira, resistiram ao ambiente tropical) de diferentes dimensões. Existem desde verdadeiros tronos esculpidos em pedra, encontrados dentro de antigos templos ou palácios (como os famosos bancos da cultura Manteña da costa do Equador, feitos entre os séculos IX e XVI) até pequenos bancos circulares de cerâmica, típicos de algumas culturas pré-incaicas do Equador e do Peru (como Narrío e La Tolita), mas presentes também na Amazônia, como os da cultura Marajoara, fabricados entre os séculos IV e XIV.
Se não temos bancos arqueológicos de madeira, podemos inferir seu uso e forma a partir de estatuetas e urnas funerárias cerâmicas que retratam indivíduos sentados. Essas representações mostram que os bancos usados no passado não eram diferentes dos atuais: sempre talhados em uma única peça, com uma dupla base de apoio e decoração externa, tomando às vezes a forma de animais. Constata-se assim que, ao contrário do que aconteceu com outras práticas tradicionais, a produção de bancos perdurou até nossos dias, chegando mesmo a revitalizar-se nas últimas décadas.
Atualmente, os bancos mais conhecidos, por sua comercialização, são os feitos pelos índios que habitam o Alto Xingu, no Mato Grosso. Seus diferentes estilos refletem a diversidade de origens, línguas e histórias de cada um dos dezesseis povos que o Parque Indígena do Xingu abriga.
Fora do parque, os Tukano mantêm-se como um importante polo de produção. Vivendo ao lado de outros vinte povos indígenas, eles compartilham um complexo sistema de trocas de diferentes objetos e produtos, no qual os bancos são não só a sua especialidade artesanal, mas também um distintivo de identidade. Povos de outras áreas também continuam a fazer bancos, como os Karajá, os Asurini e os Tapirapé, no Brasil central, ou como os Waiwai, os Wayana e os Palikur do norte amazônico, na região das Guianas e Amapá.
Seja como objetos usados no cotidiano da aldeia ou em situações cerimoniais, seja como produtos para a venda externa, oferecidos como artesanato ou design ou colecionados como arte indígena, os banquinhos hoje fazem parte dos poucos itens da cultura material indígena que, mesmo quando reapropriados fora de seu universo original, permanecem símbolos de uma duradoura tradição.
Os bancos indígenas fazem parte, assim, do rol dos objetos ditos “resistentes”, isto é, aqueles que não foram substituídos pelos produtos industrializados introduzidos aos índios desde os primeiros contatos com o branco. Machados, panelas, roupas e barcos, entre outros, foram rapidamente absorvidos em razão de sua eficácia funcional e maior durabilidade, bem como pela facilidade em obtê-los prontos. A resistência dos bancos é um bom indício de que a sua função utilitária certamente não é a razão principal pela qual os índios continuam a fabricá-los, reproduzindo, ao longo de gerações, uma cadeia operatória de técnicas de entalhe e decoração que, ao fim de três ou quatro dias, produz um único banquinho.
Entre muitos povos indígenas, o uso dos bancos materializa algumas regras sociais internas da comunidade. Sentar em bancos é quase sempre uma prerrogativa masculina; às mulheres são reservadas as esteiras, colocadas diretamente sobre o chão, o que determina que elas mantenham as pernas estendidas. O ato de sentar sobre bancos implica flexionar as pernas e colocar os pés no solo com os joelhos apontando para o céu, numa posição que cria o contato entre a terra e o céu, entre o mundo natural dos humanos e o mundo sobrenatural dos espíritos, posição esta muitas vezes só permitida a alguns homens mais importantes da aldeia.
Durante as cerimônias e os rituais, sobretudo, os bancos são usados de forma a diferenciar os indivíduos da comunidade, separando os homens das mulheres, os jovens dos velhos, os guerreiros e xamãs do restante da comunidade. Entre quase todos os povos que fabricam bancos, seu tamanho está diretamente relacionado à idade e ao prestígio do usuário.
O uso dos bancos varia entre os diferentes povos. Entre os Suyá, eles são usados por todos na aldeia, mas a mulher, o filho ou a filha não podem sentar no banco do pai. Entre os Kaiabi, apenas os xamãs e grandes chefes podiam usar o banco. Entre os Wayana, os bancos femininos são visivelmente mais baixos que os masculinos, e há um modelo diferente, com figuras de animais de cada lado, para os homens mais idosos. Entre os Yudjá, os bancos eram feitos especialmente para o uso ritual dos xamãs e grandes chefes. No Alto Rio Negro, o banco, denominado kumurõ, é também o artefato do pajé, do kumu, aumentando de tamanho segundo seu prestígio.
Os bancos também podem ser feitos para serem trocados com outros povos indígenas ou ofertados a seus aliados. Os homens Tukano, que devem casar com mulheres de povos vizinhos, muitas vezes fazem bancos para seus cunhados ou sogros.
Além de funcionarem como um demarcador social ou uma insígnia de prestígio, os bancos possuem uma dimensão sagrada. São utilizados pelos xamãs para se transformar, ascender a mundos sobrenaturais e interceder junto àqueles que causam doenças, mortes ou outras crises. Muitas vezes, é sentado sobre um banco que o xamã é induzido a um estado alterado de transe, seja por meio do consumo de bebidas alcoólicas ou de drogas alucinógenas, seja fumando tabaco, ou ainda apenas através dos cantos e das danças executados ao seu redor. Não por acaso, entre os Desana, o desenho na superfície do banco é chamado de pahmelin gohori, isto é, desenho da transformação.
O banco permite ao usuário se destacar do que está à sua volta; usá-lo é um ato essencial da procura do xamã por poderes visionários, porque simboliza um eixo, um ponto de referência central para mediar, pressagiar e realizar as curas. Assim, em muitos rituais, os bancos, junto com outros objetos sagrados, adquirem poderes próprios e são usados como verdadeiros veículos de transformação e transporte.
Entre alguns dos povos do Alto Xingu que produzem bancos zoomórficos, tradicionalmente os bancos dos xamãs eram entalhados na forma de aves, animais considerados mais próximos do mundo sobrenatural pela capacidade de voar. Aparecem, sobretudo, aves de rapina como o urubu-rei ou o jaburu, que em geral assumem um grande protagonismo nos mitos de origem desses povos. Alguns desses bancos/aves apresentam duas ou mais cabeças e uma concavidade na superfície do assento, usada para triturar e preparar os pigmentos usados na pintura corporal.
Assim, para além do sentar, os bancos materializam conhecimento, tradição e crenças que são de certa forma reatualizadas a cada vez que se talha uma nova peça. Como muitos dos outros objetos rituais indígenas, fazer o banco é tão importante quanto usá-lo. Os bancos bonitos são aqueles que são bem feitos.
Entre os ameríndios das terras baixas, todo trabalho com matérias primas de maior dureza e durabilidade – madeira, pedra e osso - é tradicionalmente masculino. Assim, os bancos de madeira são sempre talhados pelos homens, mesmo que em alguns casos, como entre os Yudjá, a pintura seja feita pelas mulheres. Apesar de ser uma atividade em grupo, alguns homens acabam sobressaindo nesta arte, e se tornam assim artesãos especializados.
Para fazer um banco, com o uso de ferramentas modernas, leva-se em média três dias. Um dia para buscar a madeira e começar a entalhar, outro para acabar o entalhe e lixar, e mais um para a decoração. Pode-se deixar a madeira secar por mais tempo, entre o entalhe e a pintura, para um melhor resultado.
O primeiro passo é buscar a madeira na floresta. Vários tipos de madeira podem ser usados para os bancos, mas são sempre as de grande dureza e durabilidade, resistentes aos insetos, muitas vezes as mesmas que são usadas para fazer canoas e casas. São em geral árvores de crescimento lento, encontradas em floresta de terra firme. Os Yudjá utilizam a mescla, o cedro ou a sumaúma. Os Kaiabi utilizam, além do cedro, a itaúba e a canela. Os Suyá usam a amoreira, o breu ou o almíscar. Os Tukano utilizam a sorva, cujo tronco de uma árvore adulta pode render até vinte banquinhos.
Uma vez derrubada e desbastada a árvore, a madeira é cortada em cilindros e levada para a aldeia. Dependendo do tamanho do banco que se pretenda fazer, deve ser carregada por dois ou mais homens. Algumas madeiras escurecem com o tempo e, se não forem talhadas logo, precisam ser conservadas dentro da água.
Uma vez na aldeia, inicia-se o entalhe, sempre levando em consideração o tamanho, a forma e a textura da madeira. Hoje, as ferramentas mais usadas são o enxó, a machadinha e o facão ou terçado.
As formas escolhidas seguem os modelos tracionais de cada grupo. Entre grupos como os Tukano, os Karajá e os Tapirapé, a forma é sempre a mesma, com pouca variação nas proporções entre o assento e as bases, mas apresentando tamanhos e motivos pintados diversos, de acordo com a finalidade e pessoa para quem está sendo feito o banco. Entre outros povos, a variação em torno dos modelos tradicionais pode ser maior e depende mais da criatividade individual do artista. Os Tukano fazem medições e marcações com carvão para garantir a perfeita simetria da forma típica de seus bancos. Outros modelos, como os bancos xinguanos dos Kalapalo e Mehinaku em forma de animal, tomam uma forma mais livre, de acordo com a textura e volume da própria madeira. Mas sempre o bom artista é o bom conhecedor da tradição.
Durante o entalhe, à medida que a escultura se torna mais delgada, as retiradas se fazem em lascas cada vez mais finas, para evitar rachaduras na madeira. Uma vez atingida a forma final, é preciso aplainar, lixar e polir a peça, utilizando-se formão, lima, lixa e pedras. O importante é obter uma superfície muito lisa, sobretudo onde será aplicada a pintura.
É preciso notar, entretanto, que nem todos os bancos recebem pintura. Entre muitos grupos, como os Asurini, os desenhos tradicionais usados na pintura corporal ou na cerâmica passaram recentemente a ser aplicados também nos bancos, para torná-los mais bonitos. Mas outros continuam a fazê-lo sem pintura, como alguns artistas Mehinaku que preferem deixar a textura da madeira “decorar” a superfície de suas esculturas zoomorfas.
Já entre outros grupos, a pintura dos bancos – tanto a maneira de aplicá-las como os desenhos executados - é parte fundamental de sua concepção. É comum a decoração ser aplicada em preto, diretamente sobre a madeira, com uma tinta obtida da mistura do carvão com algum tipo de fixador vegetal. A casca de algumas espécies de árvore (principalmente as mirtáceas e as melastomatáceas) é espremida e o líquido misturado ao carvão. O mesmo pode ser feito com as sementes de urucu, para obter uma coloração mais avermelhada. O urucu também ajuda a repelir os insetos e a selar a madeira. O uso de várias colorações em um só banco é mais raro, como a combinação de amarelo, laranja e preto dos grafismos karajás.
Os Tukano usam também o carajuru, uma tinta de coloração vermelha mais escura. Trata-se de um pigmento retirado de um cipó por mulheres de outros povos vizinhos, os Bará e os Tuyuka, e obtido pelos Tukano através da troca. Os Tukano recobrem todo o assento de seus bancos com uma espessa camada desses corantes vermelhos, que servem de base para a impressão de seus grafismos tradicionais. Neste caso, os grafismos são aplicados carimbando ou imprimindo a superfície vermelha com pequenas talas de arumã embebidas na argila. É a reação da argila com a base vermelha que produz a cor preta dos grafismos, que só aparecem depois que o banco é lavado.
Quase sempre a pintura se localiza na parte superior do assento, área de maior contato com o usuário. Mas as partes laterais e as bases, sobretudo quando têm superfícies mais amplas, também podem ser decoradas. Alguns bancos em forma de animais recebem pintura por toda a superfície, imitando os padrões da pele do animal, como as pintas das onças e as listas dos quatis. É comum os olhos serem representados por incrustações circulares de concha, apresentando certo brilho.
A maior parte dos bancos pintados exibe os motivos gráficos do repertório tradicional de cada grupo, muitos também usados na pintura corporal, na superfície de cerâmicas e cuias e nos trançados de fibras naturais. Os motivos variam também de acordo com a ocasião e finalidade específica para a qual se fabrica cada banco. Nesse aspecto, também a inovação ocorre dentro de certos parâmetros: o trabalho dos indivíduos mais imaginativos é muito prestigiado, mas sua imaginação deve operar no sentido de combinar os padrões tradicionais e adaptá-los à superfície a ser decorada, e não no sentido de inventar motivos novos.
Um olhar acurado sobre os bancos feitos pelos diferentes povos indígenas do Brasil revela uma imensa diversidade de formas e desenhos. Entre os bancos que replicam formas animais -- onças, tamanduás, quatis, sapos, arraias, tartarugas, tatus e outros -- a espécie é sempre facilmente reconhecível, mesmo que retratada de forma mais ou menos estilizada. Mesmo que representem com maior precisão os atributos de uma mesma espécie, cada exemplar é único. Nesse sentido, são verdadeiras esculturas e se aproximam das “obras de arte”, no sentido ocidental do termo.
Outros bancos são concebidos dentro de modelos absolutamente rígidos quanto à geometria das formas. Os modelos são muitos e extremamente diversificados nas combinações entre a forma do assento e da estrutura de base. Em geral obedecem a uma simetria absoluta, sendo idênticos tanto no eixo frente/costas, como no eixo dos lados direito/esquerdo.
Os assentos podem ser planos, côncavos como os recipientes em madeira, ou convexos, aproveitando a forma roliça do tronco. A forma do assento varia entre retangular, em forma de canoa, oval, circular ou alongada, com apêndices laterais, como os bancos karajás e tapirapés. As bases, quando duplas, são formadas por duas paredes laterais perpendiculares ao assento ou inclinadas em diferentes ângulos, resultando em formas mais ou menos elaboradas. Variam ainda entre paredes inteiriças ou vazadas com vãos triangulares, como nos bancos waiwais.
Os bancos kaiabis são os que apresentam as linhas mais retas, com formas retangulares tanto nos assentos como na base dupla, prolongada por hastes paralelas ao assento, ao longo do chão, que dão maior estabilidade ao banco. Nos bancos suyás, igualmente retangulares, as bases são simples retângulos perpendiculares ao assento. Nos bancos xinguanos, mesmo que os assentos tomem as formas de animais, existe uma imensa variação na forma das bases, que podem ser triangulares, trapezoidais, retas ou com hastes prolongadas.
Um levantamento regional realizado pelo antropólogo Walter Roth, apenas na área das Guianas, revelou mais de quinze modelos de formas usadas para os bancos feitos pelos povos Karib e Arawak.
A diversidade dos modelos formais de banquinhos, ainda presente entre diferentes povos indígenas das terras baixas da América do Sul, e principalmente no Brasil, é sem dúvida um espelho da própria diversidade cultural dessas populações. O que costumamos englobar sob uma única rubrica como “indígena”, na verdade acaba por mascarar um quadro atual de 234 povos, falantes de 180 línguas e dialetos, em mais de seiscentas Terras Indígenas distribuídas por todos os estados do Brasil. É dentro destes parâmetros que devemos entender a variedade de modelos de bancos: eles correspondem às diferentes tradições desses povos e funcionam como elementos de reafirmação de sua identidade.
Outra forte marca identitária de cada povo corresponde aos grafismos aplicados sobre os bancos. Entre os Tukano, todos os bancos recebem o mesmo desenho de trançado, representando o couro de uma cobra -- a cobra Canoa de Transformação, canoa mítica que transportou a primeira humanidade em seu bojo. Esse desenho pode ser combinado a outros no centro do banco, relativos a outras partes da cobra da transformação, como suas costelas, ou outros seres da natureza, como o desenho do couro de paca, de borboleta, ou de casca do abacaxi.
Nem sempre há uma correspondência exata entre o grafismo e a origem ou língua falada pelo povo indígena. No Alto Xingu, povos de diferentes origens, línguas e tradições vêm, ao longo dos séculos, compartilhando não só o território do Parque Indígena do Xingu, mas também muitas das tradições da cultura material. Alguns grafismos tradicionais dos povos de língua karib, como os Kuikuro e Kalapalo, são também aplicados aos bancos feitos pelos Kamayurá, de língua aruak, ou pelos Waujá, de língua tupi. Os Kuikuro reconhecem suas pinturas como uma de suas marcas identitárias, mas também como marca da humanidade alto-xinguana em geral. Contudo, outros povos que foram mais recentemente integrados à área, mas que não fazem parte do chamado complexo xinguano, como os Kaiabi, os Yudjá e os Suyá, mantiveram seus estilos próprios tanto nas formas do entalhe como nos motivos gráficos aplicados aos bancos.
Muitos dos grafismos que vemos nos banquinhos xinguanos são os mesmos da pintura corporal usada durante os diferentes rituais. Um dos motivos mais tradicionais, o da pintura da armadilha de pesca tihigu, é usado apenas para artefatos de madeira, no ritual funerário Kwarup, tanto nos troncos de madeira que simbolizam os mortos como nos bancos. Na decoração dos troncos que os transformam em verdadeiras efígies dos ancestrais reverenciados, é o grafismo que os torna xinguanos. A pintura tem, assim, um papel transformador, o poder de construir corpos e pessoas, distinguindo-os dos não humanos.
No Alto Xingu, muitas vezes a repetição ou sequência dos grafismos aplicados sobre os corpos e objetos corresponde ao ritmo dos cantos e danças dos rituais. Outras vezes, os animais representados nos bancos, nas cerâmicas e outros objetos são a expressão visual e material de conhecimentos tradicionais e mitos transmitidos através de gerações.
Os bancos encerram, assim, os conhecimentos tecnológicos e cosmológicos de cada cultura. Entre a tradição e o desejo estético, a função do sentar e a magia de transformar, entre o artefato e a obra de arte, a beleza dos bancos permite celebrar a diversidade e a identidade de cada povo indígena. São objetos que nos ensinam a aproximar arte e artefato, contemplação e funcionalidade, lembrando-nos da capacidade estética de agir e transformar o mundo que toda criação humana tem.
Trazer à luz esta produção artesanal é fazer com que os bancos continuem a exercer seu papel de simbolizar a determinação dos povos indígenas em preservar suas identidades perante a complexa dinâmica de sua inserção na sociedade nacional.
A preservação da cultura material, de seus objetos e técnicas tradicionais, é uma ação de autodeterminação e uma das formas mais eficazes de resistência dos povos indígenas. A salvaguarda e a revitalização de conhecimentos tradicionais vêm sendo feitas de inúmeras maneiras. É crescente o número de cooperativas de produção de artesanato, de cursos e oficinas para a transmissão de conhecimentos tradicionais dos mais velhos para os mais novos, de atividades de pesquisa e documentação de objetos tradicionais por agentes indígenas. Cresce também o número de publicações, vídeos, filmes, exposições e museus que trazem à luz o rico universo artístico e tecnológico indígena.
Um olhar aprofundado sobre os objetos produzidos hoje pelas comunidades indígenas revela não apenas a ênfase no processo, o “fazer com arte” característico da produção artesanal indígena, mas também a relação entre esse fazer e a salvaguarda de conhecimentos tradicionais.
A revitalização da cultura material acaba também por recuperar importantes aspectos da cultura imaterial: gestos e modos de fazer, denominações linguísticas, memórias, mitos, cantos e danças rituais são reatualizados através da produção material. Em 2003, por exemplo, a partir da pesquisa e do dossiê montado por agentes indígenas sobre a pintura corporal e os grafismos dos índios Wajãpi, povo indígena do Amapá, sua arte gráfica foi reconhecida como Patrimônio Imaterial Nacional pelo Iphan e depois como obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco. A pesquisa evidenciou que os grafismos estavam intimamente associados aos mitos e à memória oral desse povo.
Outro exemplo importante ocorreu em 2008, com a criação do Museu Kuahi pelos indígenas do Oiapoque, também no Amapá, com a proposta de integrar a produção estética de distintos povos da região, promovendo atividades de intercâmbio entre aldeias, instituições acadêmicas e museus. Isso mostra a participação ativa de comunidades indígenas na elaboração de seus próprios museus ou em programas de pesquisa e preservação de seu patrimônio, fenômeno resultante de um duplo processo de amadurecimento: de um lado, as comunidades percebem suas tradições estéticas como um instrumento efetivo de afirmação de sua identidade específica; de outro, a sociedade nacional valoriza a complexidade dessas manifestações ancoradas em tradições orais, conhecimentos e cosmologias nem sempre visíveis e tangíveis.
É nesse quadro que se situa a atual produção artesanal dos banquinhos para a venda. A renda gerada pela venda de artesanato raramente se constitui na principal fonte de recursos de qualquer comunidade indígena, mas vem sendo mantida entre muitos povos por também propiciar uma atividade agregadora, coletiva e de salvaguarda de conhecimentos tradicionais.
A venda realizada por meio de lojas da Funai, de cooperativas indígenas ou de comerciantes especializados em artesanato indígena traz elementos tanto de revitalização como de mercado. Modificações podem ser introduzidas a partir de padrões estéticos ocidentais, isto é, de quem compra, estabelecendo-se uma dinâmica nem sempre positiva para a manutenção de tradições. O mercado talvez não seja a via ideal para que se estabeleça um diálogo estético entre os índios e a sociedade nacional. Mas é através dele que muitos dos objetos indígenas como os bancos, a rede de dormir, os cestos e os adornos corporais têm entrado no universo do design ocidental.
Alguns antropólogos estudiosos das artes indígenas brasileiras acreditam mesmo que o fato de que os povos indígenas não concebam a arte como um domínio autônomo e meramente contemplativo -- ou seja, não separem arte de artefato, ou o belo do útil -- faz com que suas criações se aproximem mais de nossos projetos de design do que de obras de arte. Acreditam, ainda, que somente quando o design suplantar as “artes puras” ou as “belas artes” é que teremos na sociedade ocidental um quadro similar ao das sociedades indígenas.
Enfim, na fruição estética dos bancos indígenas, sejam eles reconhecidos como obras de arte, artefatos ou objetos de design, talvez a lição mais importante que tenhamos a aprender seja a de que nada deve ser feito sem arte, tradição e beleza.
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